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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

UM OLHAR MEMORIALÍSTICO SOBRE O TEATRO JOINVILENSE: 1865-1950

(Sandra Pereira)
Joinville é conhecida por ser uma cidade de perfil industrial e por concentrar, predominantemente, o seu ramo econômico na indústria metal-mecânica além de outros segmentos. No entanto, o fazer teatral em Joinville, remonta ao início do século XX com a articulação de grupos musicais , de canto-coral, orquestrais  e ligados ao fazer dramatúrgico.
Herkenhoff  (1987, p.  92-93)  salienta que  desde muito cedo  a colônia alemã  estabelecida em Joinville, já por volta de 1865, tanto na zona urbana como na área rural,  por meio da igreja  Luterana e Católica ou de associações de ginastas ou culturais,  valorizava  a  música  por  intermédio  do  canto  coral.  A música fazia parte da vida das famílias de Joinville.  Segundo a pesquisadora  Rosenete Marlene Eberhardt Llerena, em sua dissertação sobre o patrimônio musical Joinvilense[1], há dados que remontam ao ano de 1900 e que dão testemunho de   todo   esse  movimento  musical  que só  crescia   e   vinha acrescentado de pequenas orquestras e grupos musicais. 
A pesquisadora ampara-se em Herkenhoff  (1989, p.  15) que situa a existência de um meio artístico  na cidade em  1900,  descrevendo  o  4.°  centenário  do  descobrimento  do  Brasil,  comemorado durante dois dias em nossa cidade e afirma que “nos dias 3 e 4 de maio de 1900 a comemoração                                                                                                      aconteceu      com     extensa     programação        cultural. Três   peças     de   teatro    foram  apresentadas naqueles dias, duas peças no idioma alemão e uma em português (grifo nosso), as três seguidas de bailes. Em 1901, nos festejos de 50 anos de fundação da cidade de  Joinville, aconteceu a estreia de três grupos teatrais (grifo nosso), com considerável público.” 
        Ainda sobre o crescimento de grupos teatrais e sociedades culturais naquele início de século, Herkenhoff  (1989)  ressalta  o grupo da  Sociedade  25  de  Abril,  que  em  1900  apresentou  uma  peça  teatral  em  português (grifo nosso),  com muito sucesso. Outros grupos se destacaram usando o idioma da terra. 
        João Graxa Gonçalves, um dos músicos que se destacaram na cidade também atuou nos bastidores do teatro joinvilense.  Herkenhoff  (1989,  p.  16) o descreve  como  “maestro  que  desempenhou  importante  papel  e  direção  em  várias  peças  teatrais”.  Além  de  ter  sido  “grande  incentivador  do  teatro  falado  em  português”,  compôs textos musicais para várias peças teatrais. Outro nome que merece ser citado é o de  Inácio Bastos,  chefe  da  estação  telegráfica  de  Joinville,  poeta  e  autor  de  várias  peças teatrais.  
O  livro “História de Joinville”,  de Carlos Ficker (2008), traz muitos relatos sobre a vida e o desenvolvimento da cidade de Joinville por volta de 1904 e 1906 que contribuem para assinalar as primeiras produções teatrais compostas e encenadas em Joinville. Porém, nas duas  primeiras  décadas  do  século  XX  ocorreu o primeiro  grande  abalo  na  estrutura   psicossocial,   por  fatos   relacionados   com  a   Primeira  Grande  Guerra  Mundial.  Abalos  não  sentidos  em  âmbito  econômico,  e  sim  incidentes  em  suas  atividades  culturais  e  formas  de  repressão  relacionadas   às  questões  étnicas,  conforme Herkenhoff (1987). 
        Segundo Coelho (2005), os imigrantes alemães estariam longe de  constituírem  maioria  numérica,  porém,  pela  construção  e  preservação  de  sua  identidade étnica,  se destacaram no processo de colonização  e integração ao meio nacional.  No  fim  da  década  de  1930  uma  mescla  de  valores  nacionalistas  e  autoritários  movia o Estado Novo sob ordem do Presidente da  República Federativa  do  Brasil.  Getúlio  Vargas  iniciou  no  ano  de  1938  a  chamada  “grande  obra  de  nacionalização”, que tinha como função principal suprimir qualquer atividade política  de estrangeiros imigrantes no Brasil.
Os grupos de canto-coral e de teatro que se formavam, muitos deles, dentro das escolas, passam a sofrer os efeitos da nacionalização imposta por Getúlio Vargas, presidente do Brasil por dois mandatos.   Coelho  (2005)  enfatiza  ainda  que  no  estado  de  Santa  Catarina  a nacionalização adquiriu formas diferenciadas, dirigidas enfaticamente aos imigrantes  descendentes de origem alemã,  o  que culminou numa combinação de esforços por parte  do  governo,  de  ações  militares,  com  a  firme  intenção  de  “abrasileirar  os  brasileiros”.  Até  1930  o  idioma  alemão  era  o  cotidiano  na  cidade  de  Joinville,  em  todos os modos de relações.  Para Ternes  (1984), tal fato decorria  da falta de oferta por  parte  dos  governos,  até  então,  de  escolas  e  outras  formas  de  auxílio  aos imigrantes  que  viviam  conforme  a  bagagem  de  conhecimentos  que  trouxeram  da  Europa. 
        Segundo       Ternes     (1984),    as    medidas      da   nacionalização       forçaram      o  fechamento de todas as escolas que  ensinavam em  idioma alemão, o que acabou  por  provocar  falta de vagas  em escolas públicas  aos alunos egressos das escolas  particulares.  “O  governo não criou  escolas públicas suplementares”;  principalmente  em áreas rurais da cidade faltavam professores, o que resultou em queda na qualidade  no ensino. Das 661 escolas que atuavam nas regiões de imigração alemã em 1937,  sobraram  113  em 1938  e  em 1939  o  número  de escolas  era  69. Logo,  não havia vagas  nas  escolas  públicas  para  todas  as  crianças  em  idade  escolar,  assim  a obrigatoriedade de  uso do  idioma português nas  atividades  escolares teve o reflexo  de  “emudecer”  a  maior  parte  das  crianças  e  dos  professores  que  tinha  como  primeira  língua  o  alemão,  causando  graves  problemas  pedagógicos.  As  medidas  tomadas   pela   nacionalização   geraram   reflexos   imediatos   na   comunidade   dos  imigrantes  alemães,  que  não  foram  absorvidos  na  sua  totalidade  pelas  escolas  públicas existentes nesse período. Portanto, o desmonte da comunidade artística  foi e  da estrutura escolar estão associados  e, como consequência, houve o desmantelamento de várias grupos de canto-coral e de teatro que haviam surgido dentro das escolas. Quando em pleno funcionamento, a Escola Alemã, era conhecida por ensinar e promover o canto-coral, chegando a formar cantores que iriam compor outros corais locais.
       Partindo da premisssa de que quanto mais cedo um cidadão for exposto à fruição de um bem cultural e/ou ao ensino de uma arte mais chances terá de ser uma pessoal completa, tem-se a escola como espaço essencial à formação artística e oportunidade de assimilações estéticas variadas. Assim sendo, a forte pressão imposta pelos ideais nacionalistas e o consequente fechamento das escolas implicaram numa visão reducionista acerca da fruição de bens culturais  até então circulantes.
 Encerrava-se um ciclo produtivo nas apresentações teatrais  musicadas e faladas e nas quatro décadas seguintes  a produção cultural  desenvolvida em Joinville ficou restrita a algumas  festas de igreja, aos bailes de salão nos finais de semana (que persistem até os dias atuais), à Festa das Flores, aos jogos de futebol,  à fruição do acervo dos museus, aos cinemas e eventuais exposições de artes plásticas.
Da época getulista até os idos de 1970, a cidade ressente-se da ausência de espetáculos produzidos em Joinville apesar da potencialização da expansão industrial que ocorria na cidade.
“[...] da década de 1970 para cá a população de Joinville cresceu de 150 mil habitantes para pouco além dos 500 mil atuais. A área urbana ampliou-se  em  vários  quilômetros,  surgindo  na  geografia  da  cidade novos e populosos bairros. O perímetro urbano, de uma extremidade a  outra,  varia  em  torno  de  25  km.  Novas  três  Joinvilles  foram agregadas à cidade de 1973. A frota de veículos automotores saltou de 19 mil para os atuais 250 mil. Em 1966 a frota não chegava a 5.140 mil  veículos  motorizados.  O  número  oficial  de  ruas  e  avenidas cresceu de 1.200, em 1974, para 4.129 hoje, o que, somando  a becos e servidões, eleva a mais de 5 mil as ruas na cidade. “ (TERNES, 2010: 332)
A despeito desse perceptível desenvolvimento industrial, não existia, contudo,  produção teatral  na cidade, salvo uma ou outra iniciativa isoladas, notadamente nas décadas de 70 e 80, que não apresentaram continuidade, gerando um novo hiato da oferta desse bem. Nesse cenário contudo, o teatro da Sociedade Harmonia Lyra continuava, vez por outra, a  trazer shows musicais e ao final da década de 80 e início da década seguinte, recomeçou a trazer  peças teatrais com artistas renomados, vindos dos grandes centros culturais do país (eixo Rio-São Paulo).
Ainda sobre a década de 80, vale ressaltar que a cidade continuou a progredir no ramo industrial e também em outros segmentos o que propiciou uma diversidade econômica que trouxe em seu bôjo oportunidades de negócios para os setores ligados ao comércio, à saúde, ao turismo executivo notadamente, ao lazer e à cultura em termos de festas populares, abertura de salas de cinema em shoppings e exposições de artes plásticas. Segundo Ternes (2010: 333)   “A  globalização  mudou o cenário  econômico  de  Joinville  nas  últimas  décadas  [...]”  e  novos  negócios  surgiram como fábricas de equipamentos para ginástica, produtoras de  softwares, modernização tecnológica, gestão empresarial informatizada e um número expressivo de abertura de pequenas  e  médias  empresas  fomentando  o  crescimento  econômico  local. 
No entanto,  somente a partir de 1997 o cardápio cultural será ampliado com uma maior articulação na área teatral. É nessa fase que a cidade passa a contar com a retomada de uma produção local  mais constante devido a chegada de alguns diretores de teatro vindos de outras cidades. Deixava-se de encenar espetáculos apenas trazidos pelos grupos teatrais de outros pólos para reativar a produção local feita por  diretores, escritores e atores que residiam em Joinville. Ressalte-se o papel da UNIVILLE-Universidade da Região de Joinville que passou a contar com um grupo de teatro na década de 90 o que ajudou a fomentar a produção local ao lado de outros nomes.
Face ao poder do teatro  em operar uma leitura do social e do nosso entorno; de possiblitar a percepção de uma verdade sob vários ângulos treinando nosso olhar e aguçando nosso senso crítico sobre temas variados (BOAL: 1991)  é que considera-se fundamental a inserção da oferta do teatro como  bem cultural à uma população marcadamente imersa num cotidiano de ferro e aço,  pouco ou nada exposta à fruição desse produto cultural, como forma de ampliar sua visão sobre seu próprio entorno e possibilitar reflexões para além do mesmo.
Assim, considera-se  relevante um registro acerca da evolução do teatro em nossa cidade sob a forma de um olhar memorialístico, inicialmente sobre a produção teatral feita em Joinville, por pessoas aqui residentes,  no período 1865 -1950 e que pode tornar-se viável a partir de pesquisas bibliográficas, documentais, webgráficas que possibilitará recuperar registros que ajudem a contar acerca da produção teatral local daquelas décadas.
A pesquisa bibliográfica e documental, além de contribuir para a recontar o teatro que se fazia naquelas épocas, também servirá para aguçar nosso olhar sobre as relações sociais subjacentes a esse movimento cultural, bem como, ajudará a compreender as relações de poder implícitas em tais relações.
Outra justificativa ao trabalho que ora se empreende é o fato de que o teatro é uma ferramenta  para questionar o mundo, pois tematiza problemas do cotidiano e do entorno do cidadão, conclamando-o à reflexão, à mudança de posturas e tomada de decisão, à quebra de paradigmas, à reconstrução de um novo cenário social, melhor ou inteiramente novo o que significa aprender a fazer a política no cotidiano de nossas ações “pois todo o teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas.  Afinal, o teatro é transformação, movimento, e não simples apresentação do que  existe. É tornar-se e não ser.” (BOAL: 1991). Nesse sentido, entendemos que ao registrar a evolução do teatro em Joinville será possível perceber a crescente oferta desse bem cultural como uma intervenção positiva no dia a dia da cidade, uma mudança nos hábitos de consumir cultura e, portanto, uma transformação social em função de um cardápio cultural reconfigurado.
            A investigação sobre as representações teatrais em Joinville, nas décadas de 1865 à 1950, sustentada por conceitos de cultura, patrimônio, identidade, memória, arte e diferentes concepções de teatro, a partir da análise de múltiplas vozes, permite perceber como a cidade foi receptora e produtora da arte teatral.  
REFERÊNCIAS:
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6ª
. Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1991.
BRASIL. MINISTÈRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Parâmetros curriculares nacionais: Arte. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental: Brasília (DF), 1997 v.VI. 
COELHO,  Ilanil.  É  proibido  ser  alemão:  é  tempo  de  abrasileirar-se.  In: GUEDES,  Sandra  P.  L.  de  Camargo  (Org.).  Histórias  de  (i)migrantes:  o  cotidiano  de  uma  cidade. Joinville: Editora Univille,  1998.
 
______ . É proibido ser alemão: é tempo de abrasileirar-se.  In: GUEDES, Sandra P.  L. de Camargo (Org.). Histórias de (i)migrantes: o cotidiano de uma cidade. 2. ed.  rev. e atual. Joinville: Editora Univille, 2005.
 
______ .  Pelas  tramas  de  uma  cidade  migrante  (Joinville):  1980-2010.  Tese  (Doutorado  em  História)–Universidade  Federal  de  Santa  Catarina,  Florianópolis,  2010. 
 FICKER, Carlos.  História de Joinville. Crônica da Colônia Dona Francisca. 3. ed.  Joinville: Letradágua, 2008.  

HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective. 
HERKENHOFF, Elly. Era uma vez um simples caminho...  Fragmentos da história  de Joinville. Joinville: Fundação Cultural, 1987. 
______. Joinville nosso teatro amador (1858-1938). Joinville: AHJ, 1989.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 2
ª. São Paulo: UNICAMP, 1992.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 3ª.  Petrópolis: VOZES, 2005.
MAFFESOLI, Michel. Saturações. 1ª.  São Paulo: ILUMINURAS, 2010.
MINAYO, Maria Cecília de S. e SANCHES, Odécio. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.9, n.3, jul/set. 1993.
MICHALSKI, Yan. Augusto Boal. In: ______. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq
TERNES.  Apolinário.  Tempos  modernos:  a  presença  dos  italianos  em  Joinville  – 1973-2008. Joinville: Editora Univille, 2010.

Sites consultados:
Página na internet sobre a Lei Rouanet e seus diversos editais disponível em:
<http://www2.cultura.gov.br/site/>. Acesso em: 18 mai. 2013, 16:30:30.







[1]  LLERENA, Rosenete M.E. A memória do patrimônio musical de Joinville: uma abordagem sócio-histórica e cultural das composições de 1900 a 1950.  Dissertação (Mestrado  em  Patrimônio Cultural e Sociedade)–Universidade  da Região de Joinville,  Joinville, 2012, p.65-66.
 
  

sábado, 19 de outubro de 2013

O “MEU” RIO JARAGUÁ
(BAIRRO DO RIO DO CERRO –  JARAGUÁ DO SUL,SC)
                                                                                                          Sandra Pereira

A dificuldade em encontrar  algum registro fotográfico de época relativo a uma paisagem natural que tenha marcado a minha infância (e que eu pudesse confrontar com as imagens de agora) afim de poder cumprir com o  trabalho pedido pelo professor  do meu curso de mestrado, na Univille, não impede que eu vasculhe minhas memórias e, fechando os olhos, encontre o mesmo rio Jaraguá, imenso e caudaloso como ainda o trago guardado em mim.
O “meu” rio Jaraguá de 1968, parece gigante aos meus olhos de menina. Tenho apenas 6 anos e moro bem ao lado dele. Meu pai é um dos funcionários da recém-fundada Malwee e moramos (sem pagar aluguel) numa casa de madeira que nos foi recentemente cedida pelo proprietário da empresa. Portanto, estou, no máximo, a 50 metros da margem do rio, pouco antes da enorme ponte de madeira e muito próxima à residência da família Weege.
O “meu” rio guarda mistérios insondáveis que aguçam minha curiosidade.
Sem pedir licença, resolvo descer a barranca e refrescar meus pés numa pequena praia de areia clara e seixos arredondados.
A tentação de banhar-me é enorme, porém, assustada, mudo de ideia ao ouvir o chamado, já desesperado, de minha mãe.
Preciso ir para casa. Que pena! Não deu tempo de recolher os ovos que as patas (ou seriam gansas?) costumam depositar na areia.
“Que ovos, menina! Isso deve ser ôvo de cobra! Não lembra da cobra que a mãe matou semana passada??”
Só então descubro que os répteis adoram fazer seus ninhos nas barrancas do rio e no verão costumam sair para dar suas voltinhas no pomar da minha casa... e até dentro dela.
Ainda assim, não me importo em dividir a beleza do rio com os mesmos. Tenho fascínio pela água e levo algum tempo até poder convencer minha mãe a darmos um passeio na sua prainha. Preciso mostrar-lhe os ovos  afim de que ela os identifique e, quem sabe, traga alguns para fazermos um bolo.
Um aparte para falar de minha mãe: Rosa é uma mulher de mil habilidades. Além de matar cobras logo na primeira paulada, sabe fazer doces como ninguém e prontamente identifica os ovos: são de gansa! ... “mas aqueles mais compridos alí,  não sei não!!!”
Porém, o sonho de comer um bolo feito com aqueles ovos sucumbe diante da postura politicamente correta da minha mãe: “As gansas não são nossas!! Nein, nein!”
Nesse dia aprendo minha primeira lição sobre o que é ser honesta: “Não se tira um grão de arroz do lugar se ele não for nosso!”... tão diferente do lema “achado não é roubado” que irei presenciar pela vida a fora. “Vou fazer um bolo de laranja com ovos de galinha mesmo! E nada de você ir sozinha no rio!”
Fica combinado que eu devo brincar no quintal sob os olhos atentos de minha mãe.
O jeito é subir na goiabeira para poder admirar o rio de longe e poder cantar pra ele e pra Deus, um dos meus passatempos favoritos. Gosto de ouvir minha mãe cantar e ela me ensina velhas cantigas em alemão. Falo alemão –uma variante dialetal que talvez já tenha desaparecido. Não me alfabetizo nessa língua; continuo “analfabeta em alemão” até hoje. Porém, guardo-a numa gaveta trancada em algum canto da memória.
A goiabeira convive em paz com os vários pés de frutas e vou aprendendo a conhecer cada um: laranja-açúcar, laranja-lima, pêssego, ameixa, mamão, abacate, limão e me delicio ajudando minha mãe a cuidar da  imensa horta –tenho até minha própria enxada pequena. Sinto-me importante semeando os canteiros e vivo uma infância feliz num bairro que se urbaniza rapidamente e ao mesmo tempo conserva ares de cidade do interior.
Nesse sábado, pela noite, meu pai e os vizinhos colocarão os côvados para capturar um peixe que rasga todas as redes de pesca: o cascudo da pedra. Ainda que a fábrica lance tinta de tecido no rio, mesmo assim é possível, em um ponto mais distante, anterior à fábrica, pescar e ser feliz.
Chega o domingo de manhã e resolvo acompanhar meu pai na empreitada. Costumo acompanhá-lo na pesca de caniço.
Fico empolgada ao ver os homens abrindo aqueles côvados que mais parecem  cestos gigantes. Sou apresentada ao peixe e nunca esquecerei da sensação rugosa que experimento ao tocar um exemplar da espécie embora ele me pareça extremamente feio.
Meu cunhado aparece com minha irmã e os filhos. Meu pai e ele gostam de cozinhar e volta e meia inventam algum prato. Um dos colegas de meu pai ajuda a trazer os peixes. Começam a limpá-los e vão jogando dentro de um panelão.. Ao cabo de um tempo, está pronto um delicioso caldo de cascudo da pedra. Sim, “tem que ser da pedra!”. Sou informada  que existem cascudos que vivem em outras águas, porém, o das pedras é o de melhor sabor.
Cresço um pouco e estou ansiosa para ser matriculada no pré-primário. Na verdade ando rabiscando umas folhas em branco nos cadernos antigos das minhas irmãs (ótimas alunas!) que a minha mãe guarda de lembrança dentro duma velha bolsa escolar de couro. Ela nem imagina que arranquei uma folha para desenhar. Uma só! Mesmo assim, logo sou descoberta e passo a fazer meus rabiscos em papel de pão até o dia em que compram um caderno só pra mim.
Coloco as bonecas sentadas em cima dos caixotes de madeira e dou aula para elas. Noutras vezes faço de conta que são um balcão ou uma mesa “de escritório” e me ponho a sonhar em, um dia, trabalhar num lugar grande, sentada atrás duma mesa que tenha uma máquina de escrever e uma calculadora iguaizinhas as que vi no escritório da empresa quando, dia desses, fui levar a marmita para o meu pai que não queria “perder tempo” em vir almoçar em casa.
O rio me intriga e me encanta. Convenço meu pai a nos levar para tomar banho num dia quente de verão. A água é limpa e posso enxergar as pedras e os peixinhos nadando por entre meus pés.
No final deste ano mesmo iremos mudar para Guaramirim onde iniciarei meus estudos. Não frequento o pré-primário por muito tempo.
Dizem os psico-pedagogos que as brincadeiras de infância delineiam os múltiplos papéis que se vai desempenhar na vida.
Pois digo que olhando o rio do alto da goiabeira (onde gosto de cantar bem alto) ensaio e sou várias pessoas: uma quase atriz, uma quase-cantora e uma quase violonista; bancária, secretária numa multinacional (num escritório “bein grandeee”), leitora voraz metida a escrever e professora de idiomas. Viajo por uma parte do mundo, exercito meu inglês e em Frankfurt, na hora de pedir uma informação, nem todos dominam o idioma “mundial”. Vejo-me obrigada a destravar uma gaveta: encontro a chave rapidamente e arrisco um “Bitte, wo ist das Badezimmer?” (Por favor, onde fica o banheiro?) e me surpreendo ao entender a resposta: siga em frente e entre na quarta porta à direita. Alívio ao quadrado!
Nesse dezembro de 68, dias depois do Natal, despeço-me do “meu” rio Jaraguá um pouco entristecida mas supero isso em poucos dias, animada com o início das aulas que me esperam em Guaramirim.
Futuramente voltarei para visitar o Parque da Malwee algumas vezes, porém, de carona. Todas as vezes meus olhos irão procurar sôfregos a casa e o rio. Quando pergunto sobre a ponte e a casa, a resposta é sempre a mesma: “Já passou! Você não viu?”

(...)
Nesta tarde de 2013, aos 51 anos volto à Barra do Rio do Cerro e molho os meus pés no rio  Jaraguá ainda uma vez.
Surpresa o reconheço muito embora ele me pareça diferente: não é tão grande quanto eu o trago guardado em mim. Será que cresci tanto assim ou ele, como um ancião foi quem encolheu? Ainda vejo umas poucas árvores em suas encostas, porém, suas barrancas deram lugar a um muro o que o faz parecer ainda mais estreito. Suas águas estão mais escuras com uma coloração barrenta. Nem sinal das gansas tampouco das cobras!
Será que todos foram embora como eu?
Sou informada que ainda é possível pescar em alguns pontos do rio, notadamente, após a chuva. Geralmente dois dias depois o rio fica limpo.
Lembro do meu professor me pedindo para prospectarmos o local considerando uma aproximação de dois graus entre a temperatura máxima no inverno e a máxima de verão. Sou alertada que, possivelmente, estas duas estações desaparecerão de nosso estado nos próximos quarenta anos. Provavelmente, viveremos num clima de “eterna” meia-estação. Haverá um impacto no meio ambiente com fortes consequências para a nossa economia em seus vários segmentos: desaparecem o turismo de verão e não teremos mais maçãs em Friburgo; só haverá espaço para o cultivo de bananas, mesmo nos lugares mais altos.
A projeção que faço me alerta sobre o desaparecimento das árvores frutíferas e o aquecimento das águas que podem vir a extinguir algumas espécies de peixes. Tomara que estejam enganados! Só o tempo dirá.
Ansiosa, procuro vestígios da velha casa e seu pomar. Quem sabe ainda esteja lá! Talvez eu possa ver ao menos um pé de laranja ou a velha goiabeira.
A foto que localizo pela internet desmonta minha expectativa e vejo que o local é, agora, um estacionamento.
A rua está pavimentada e nas calçadas estão plantadas belas árvores. O cenário é agradável, porém, é outro. Há sinais de desenvolvimento e modernidade por todo lado.
E a ponte gigante de madeira? É de concreto e parece tão pequena!
Aliviada percebo que  a velha fábrica ainda permanece lá. Seu prédio de tijolinhos à vista também não me parece tão grande (risos) embora seja possível visualizar sua expansão.
Também reencontro a antiga casa dos donos da empresa -hoje transformada num escritório- e que povoa minhas fantasias tal é sua beleza e a formosura de seus “imensos” jardins.
A menina que sou ainda conversa com a filha dos donos pela cerca de arame farpado que separa as duas propriedades. Vez por outra uma gentil senhora, com ares de avó a acompanha e, ambas, vem conversar com minha mãe e eu. As senhoras, por puro saudosismo, falam em alemão e apreciam a companhia uma da outra. Sou presenteada com roupas e brinquedos semi-novos quase sempre. Não tenho tudo o que quero mas tenho tudo o que preciso. Nada me falta. Nessa mesma manhã somos convidadas para um delicioso café da tarde e brinco um pouco com a garota, mais velha do que eu uns poucos anos. Diante do “Vamos embora que já é tarde!” imploro que minha mãe me deixe ficar um pouco mais: a casa de bonecas está a espera de ser visitada e meus olhos vislumbram um espetáculo jamais esquecido.
Subitamente ouço minha mãe chamando por sobre a cerca: “Pra casa, já! Tem uma  louçinha pra você secar!”.
Relutante e educada me despeço. Há duas tarefas que precisam ser cumpridas. Atendo à mãe e ao professor: revisito o rio pela minha escrita e os meus pés o tocam pois a menina “de dentro dele nunca os tirou”1.







1 Trecho extraído da música “Força Estranha” de autoria de Roberto e Erasmo Carlos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Resenha crítica

Resenha Crítica - ANALÍTICAS CULTURAIS de Lev Manovich



Resenha Crítica
Autores da Resenha: 
Sandra Pereira
Referência do Texto:
ANALÍTICAS CULTURAIS
Palavras-chaves (3):
ANALÍTICA – CULTURA - DIGITAL
Desenvolvimento do Texto:
       Lev Manovich (Moscou, 1960), crítico de cinema e professor universitárioestabelecido nos Estados Unidos. É pesquisador na área de novas mídias, mídias digitais, design e estudos do software (software studies). Mudou-se para Nova Iorque nos anos 1980, onde realizou seus estudos em cinema computação.                   Atualmente, Manovich atua como professor e coordenador do Centro de Pós-graduação em Humanidades Digitais (Digital Humanities) na City University of New York (CUNY), local onde fundou o primeiro centro de pesquisa dedicado ao tema das humanidades digitais, com programas de mestrado e doutorado na área e coordena o Laboratório de Estudos do Software (Software Studies Initiative - www.softwarestudies.com.br) em parceria com o CALIT2, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), o Graduate Center da CUNY e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).     
      Desde 2006, Manovich passou a se dedicar a analisar a chamada "sociedade do software". O seu grupo de pesquisa em Software Studies dedica-se a pensar os efeitos do software na sociedade e de que forma o software vem transformando a maneira como vivemos, pensamos, tanto economicamente quanto culturalmente,seus textos tratam de "cultural analytics", ou "analítica cultural", uma forma de se pensar nos efeitos do software sobre as representações culturais. Em, “Como acompanhar culturas digitais globais ou Analíticas Culturais para iniciantes”, o autor vem nos alertar que em tempos globais, qualquer pessoa, em qualquer parte do planeta, ao criar um blog passa a ser considerada uma produtora de conteúdo cultural nascido em meio digital, ainda que amadoristicamente, e pode compartilhá-lho com o mundo todo. Portanto, a oferta de produtos culturais não se restringe mais aos pólos  geradores de cultura tradicionais como Paris. Pulverizou-se a produção de conteúdos tanto profissional quanto amador e –sublinha o autor – as cidades do terceiro mundo e as do leste europeu, regiões ainda em expansão econômica, tem sido as mais receptivas aos novos softwares que possibilitam produzir arte, haja vista os vários sites de arquitetura no qual profissionais de todas as partes disponibilizam seus portfólios. É a globalização da cultura em meio digital! É a redefinição do que é cultura.
          No entanto, o autor alerta para outra situação: antes, os teóricos culturais e historiadores poderiam gerar teorias e histórias baseadas em pequenos conjuntos de dados, por exemplo, conseguiam escrever sobre o  "cinema clássico de Hollywood" ou sobre o "Renascimento italiano" pois a produção desses artefatos estava concentrada em alguns pólos e era necessário ir até eles, participar das exposições para poder escrever sobre os mesmos. Porém, como conseguir apreciar e acompanhar a  cultura que agora se cria em meio digital, e que é globalmente, produzida e ofertada diariamente por centenas de milhões de contribuintes no mundo todo? Como conseguir compreender como se deu o desenvolvimento de determinado produto, entender como cada “artista” concebeu sua “obra”? Quais as aspirações que subjazem em cada trabalho?
     Manovich frisa que não é possível “catalogar” tais conteúdos com as ferramentas que eram utilizadas no século 20 e aponta com uma possiblidade: “E se utilizássemos os softwares e computadores (que hoje em dia são onipresentes) para tal função?”
        Um dos objetivos que se acredita seja possível atingir mediante a utilização da Analítica Cultural é analisar quantitativamente a estrutura desses objetos e visualizar os resultados revelando os padrões que se escondem sob a estrutura e que não são possíveis de serem trabalhados sem a ajuda das capacidades de percepção e cognição humana. Outra possibilidade é estabelecer uma taxonomia para os diferentes tipos de conteúdo. Essa taxonomia pode orientar a elaboração de estudos e pesquisas, bem como, ser usada ​​para agrupar esses estudos uma vez que começam a se multiplicar considerando o incremento da quantidade de conteúdo digital disponibilizada a partir de meados da década de 1990.
        O autor argumenta que a utilização sistemática de análise computacional em grande escala e a visualização interativa de padrões culturais vai se tornar uma grande tendência na crítica cultural e nas indústrias culturais nas próximas décadas. O que vai acontecer quando os humanistas começarem a usar visualizações interativas como uma ferramenta padrão em seu trabalho, da mesma forma como muitos cientistas  já o fazem? Se através de slides (apresentações) é possível ensinar e aprender sobre história da arte, e se através de um projetor e da gravação de um vídeo é possível, igualmente, ensinar sobre cinema, fica a curiosidade: que tipo de disciplinas culturais (cadeiras nas universidades) podem vir a surgir a partir do uso da visualização interativa e da análise  de grandes conjuntos de dados culturais? Que tipos de novas demandas teremos? Afinal, com uma boa base de dados, estatisticamente analisados, é possível inverter o fluxo da produção cultural: se antes um jovem arquiteto lançava um portfólio arriscando-se a não vender seu produto; mediante análise da preferência do público ele pode atender melhor suas demandas e as chances de vender seu produto serão maiores. E assim é com todo tipo de artefato cultural ofertado pela web.
         Aos livros, jornais, revistas, filmes, obras de arte e arquivos de som, que estão sendo digitalizado em escala maciça, é possível aplicar técnicas de análise de dados para grandes coleções de diversos recursos do patrimônio cultural do mesmo modo como  já se aplicam essas técnicas aos dados científicos. Como essas técnicas podem ajudar os estudiosos a utilizar tais análises para fazer novas perguntas sobre o que é o conhecimento e sobre como obter novos conhecimentos para o benefício da humanidade? Como construir novos conhecimentos?
        Se quisermos estudar quais os estereótipos culturais contemporâneos e quais convenções delineiam a produção cultural atual, basta analisar os portfólios disponibilizados por contribuintes ainda “não profissionais” pois no afã de querer se profissionalizar, os mesmos acabam, inadvertidamente, expondo  os códigos e os protótipos (ou modelos) utilizados nas indústrias de uma forma muito clara. Ou seja, é possível perceber e desenvolver estudos sobre tendências culturais a partir da percepção de padrões.
          Manovich  faz uma profecia  em 2009 e que se cumpre na atualidade: sempre que acessamos a internet somos de algum modo “acompanhados” e há vários ícones piscando, pedindo para serem clicados e que funcionam como “agentes” que rastreiam os sites que visitamos e registram  nossas preferências. Tais procedimentos geram estatísticas e estudos de tendências de consumo que são vendidos para todos os tipos de indústria de modo que possam produzir de acordo com o esperado pelos clientes. Nesse sentido, a indústria cultural também se utiliza das mesmas ferramentas de análise. Se considerarmos que muito do que se disponibiliza atualmente na internet pode ficar armazenado em nuvens e deslocando esse argumento para a discussão dos bens culturais sob a ótica da preservação dos mesmos enquanto patrimônios culturais imateriais disponibilizados digitalmente, é de se imaginar que muito em breve não haverá mais necessidade de registrar tais acervos e surge o questionamento: preservar para quê e para quem?
       Ainda no tocante aos patrimônios culturais materiais e imateriais a escolha quanto ao que deve efetivamente ser preservado sempre costuma ser fruto de ajuizamentos feitos segundo os interesses de quem quer preservar. Nem sempre a decisão de preservar um patrimônio nasce no bojo das discussões  interativa entre múltiplos atores sociais. Nesse sentido, Manovich nos faz pensar que sendo a internet um território no qual todos podem disponibilizar e ofertar seus bens culturais, a decisão de quais acervos manter digitalmente para fruição permanente do público implica numa descentralização de poder, a partir do momento em que se leva em conta estudos estatísticos e humanísticos para melhor atender o público que consome arte, a própria oferta de um cardápio variado de produtos culturais implica em processos de seleção mais democráticos pois se atenta à formação do gosto sempre que se considera os estudos e indicadores que refletem as aspirações de quem consome tais produtos.
       Texto interdisciplinar dirigido para designers, produtores culturais, escritores, pessoas envolvidas em processos de registro de patrimônios culturais imateriais, antropólogos, sociólogos, historiadores, profissionais de informática pois, o texto ao abordar a produção cultural e seus mapeamentos, abre para discussões e imbricamentos vários.  
Observações:
Artigo disponível em inglês e alemão, retirado do blog: http://lab.softwarestudies.com/p/publications.html

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Fichamento. Aluna: Sandra Pereira. Disciplina: Memória e Identidade. Mestrado em Patrimônio Custural e Sociedade, turma VI, Univille. Profas: Ilanil Coelho e Raquel A. S. Venera.

Texto: CANCLINI, Nestor. Diferentes, desiguais e desconectados. UFRJ: Rio de Janeiro, 2005. Cap. 1.

Néstor García Canclini (La PlataArgentina1939) é um antropólogo argentino contemporâneo.
O foco de seu trabalho é a pós-modernidade e a cultura a partir de ponto de vista latino-americano. É considerado um dos maiores investigadores em comunicação, cultura e sociologia da América Latina.
Estudou Filosofia e concluiu o doutorado em 1975 na Universidade Nacional da Prata. Três anos depois, concluiu o doutorado na Universidade de Paris.
Atuou como docente nas universidades da Prata (1966-1975) e Buenos Aires (1974-1975).
Foi também professor nas universidades de StanfordAustinBarcelona e São Paulo.
É professor desde 1990 da Universidad Autónoma Metropolitana no México, onde está radicado
Um de seus livros lançados no Brasil com o título Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade abriu uma nova linha para estudos culturais no continente.
Outro deles, Consumidores e Cidadãos(1995), propôs a politização do consumo e rompeu a forma tradicional de analisar hábitos televisivos.
É autor de estudos culturais interdisciplinares, ou seja, a cultura ou as culturas, bem como as suas interações, convergências e choques.
Estudioso da globalização e das mudanças culturais na América Latina, seu trabalho é marcado pela análise e as mesclas entre culturas, etnias, referências midiáticas, populares e tradicionais.
Recebeu o título de pesquisador emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores do México.
Uma de suas obras, Culturas Híbridas, recebeu o prêmio Book Award, concedido pelo Latin American Studies Association, por ter sido considerado o livro do ano em 2002 sobre a América Latina.

Alguns livros em espanhol
·         Arte popular y sociedad en América Latina, Grijalbo, México, 1977
·         La producción simbólica. Teoría y método en sociología del arte, Siglo XXI, México, 1979
·         Las culturas populares en el capitalismo, Nueva Imagen, México, 1982
·         ¿De qué estamos hablando cuando hablamos de lo popular?, CLAEH, Montevidéu, 1986
·         Cultura transnacional y culturas populares (ed. con R. Roncagliolo), Ipal, Lima, 1988
·         Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad, Grijalbo, México, 1990
·         Cultura y Comunicación: entre lo global y lo local, Ediciones de Periodismo y Comunicación.
·         Las industrias culturales en la integración latinoamericana
·         La globalización imaginada, Paidós, Barcelona, 1999
·         Latinoamericanos buscando lugar en este siglo, Paidós, Buenos Aires, 2002
·         Lectores, espectadores e internautas, Gedisa, Barcelona, 2007

Títulos traduzidos para o português e lançados no Brasil
·         Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade19902
·         Consumidores e cidadãos19951 2
·         Leitores, espectadores e internauta2008,1 Ed. Iluminuras, São Paulo
·         Diferentes, desiguais e desconectados, 2005, Ed. UFRJ, Rio de Janeiro
·         A globalização imaginada, (2003), Ed. Iluminuras, São Paulo
·         As Culturas Populares no Capitalismo,(1983), Ed. Brasiliense


Tema
 As narrativas mais recentes sobre “cultura” e identidade.
Problema
A inexistência de um conceito de cultura que dê conta de abarcar todos os processos do mundo global corrente, que contenha em si toda a multiplicidade identitária dos tempos pós-modernos e que  seja representativo do pensamento de todas as ciências.
Idéia principal
            Uma possível definição operacional, compartilhada por várias disciplinas ou por autores que pertencem a diferentes disciplinas acerca do que seja “cultura”.
Estrutura do texto
Introdução ao Capítulo 1: introduz o capítulo 1 expondo algumas das primeiras definições de “cultura”; comunica que é importante compreender como se foi chegando, nas ciências sociais, a certo consenso em torno de uma definição sociossemiótica da cultura e quais problemas colocam a este consenso as condições multiculturais em que este objeto de estudo varia. Em seguida, anuncia que irá se ocupar das redefinições operadas por jornalismo, mercados e governos pois essas noções, por terem eficácia social, devem fazer parte daquilo que é preciso investigar.
1ª parte: de uma perspectiva antropológica e apoiado em diversos teóricos, explana sobre  as duas principais narrativas existentes quanto ao que seja “cultura” e dos “labirintos do sentido”, ou seja, da multiplicidade de ideias daí advindas.
2ª parte: discorre sobre  as quatro vertentes contemporâneas que destacam diversos aspectos da perspectiva processual, a qual considera, ao mesmo tempo o sociomaterial e o significante da cultura. Não são paradigmas. São formas com as quais se narra o que acontece com a cultura na sociedade -o que implica em estar diante de conflitos nos modos de conhecer a vida social.
3ª parte: O autor propõe pensar a cultura não como substantivo, mas sim como o adjetivo cultural. Já que não faz mais sentido imaginar a cultura como um bem, propriedade de uma nação, faz sentido imaginar a cultura como, justamente, a qualidade desse sistema de significações próprios de um povo. E com esta visão, valoriza-se justamente a relação intercultural, como as diferenças  de  dois  ambientes  diferentes  dialogam  entre  si,  entre  outras  palavras,  a interculturalidade.
Autores com os quais dialoga:
LASKY, Melvin J.
Canclini faz crítica à Lasky (pág. 29 e 30) pois o último fala do “zumbido ensurdecedor”  produzido pela proliferação dos significados acerca do termo “cultura”. Lasky responsabiliza os marxistas (por terem começado a falar de “cultura capital”) e os antropólogos por terem utilizado a palavra a partir do próprio título do livro de Sir. Edward Tylor “Culturas Primitivas”. Lasky dizia que “Por definição, a cultura não poderia ser primitiva” (2003, p. 369)
Filósofos alemães: Herbert Spencer,Wilhelm Windelband, Heinrich Rickert (final séc XIX e início do séc XX).
Menciona, apenas ilustrativamente, deles a primeira noção, mais óbvia, da cultura como sendo o “acúmulo de conhecimentos e aptidões intelectuais e estéticas” (pág. 31)  e de Rickert, em particular, a distinção que o mesmo fazia entre cultura e civilização. Elegantemente faz coro “às muitas críticas que os estudiosos costumam fazer “a esta distinção taxativa entre civilização e cultura”. (pág. 31)
BORDIEU, Pierre.
Menciona Bordieu que opõe cultura e sociedade (pág. 39)
BAUDRILLARD, Jean.
Retoma apenas ilustrativamente BAUDRILLARD e seus “quatro tipos de valor na sociedade: uso, troca, signo e símbolo” (pag. 40)
HOBSBAWN,  
Quando CANCLINI menciona que as interações (das pessoas estrangeiras morando em outro lugar) têm efeitos conceituais sobre as noções de cultura e identidade, menciona HOBSBAWN como sendo o criador da ideia de identidade coletiva como sendo “mais camisa do que pele” e já aproveita para ironizá-lo dizendo que é preciso lembrar das inúmeras condutas racistas que ontologizavam na pele as diferenças de identidade  e diz que, “seria útil completar a metáfora de Hobsbawn com um análise dos variados tamanhos de camisa”. (pág. 45)
APPADURAI, Arjun
Concorda com APPADURAI que considera a cultura não como um substantivo, mas como adjetivo.
ORTNER e
GEERTZ
Concorda com ORTNER (1999, p.7) e GEERTZ que falam do “cultural” como o choque de significados nas fronteiras...” (Pág. 48) ao invés de “cultura”.
GRIMSON, Alejandro
Concorda com GRIMSON que, na leitura do conceito acima, sublinha que esta concepção do cultural como algo que sucede em zonas de conflito situa-o como processo político: refere-se aos “modos específicos pelos quais os atores se enfrentam, se aliam ou negociam” (Grimson, 2003, p. 71) – PÀG. 48.
PRICE,
Concorda com PRICE quando este argumenta sobre “arte primitiva” e diz que tal como “os africanos capturados e deportados para países distantes na época do comércio de escravos”, os objetos de “outras” sociedades foram “apreendidos, transformados em mercadoria, esvaziados da sua significação social, recolocados em novos contextos e reconceituados para responder a necessidades econômicas, culturais, políticas e ideológicas dos membros das sociedades distantes.” (ibid, p.22) = PÀG. 50.

Idéias principais.
Introdução ao Capítulo 1
           Inicialmente cita que em 1952 dois antropólogos pesquisaram mais de 300 formas de definições; em 2001 outro antropólogo reuniu mais 57 usos distintos do termo cultura que pesquisou em jornais alemães, ingleses e estadunidenses. [35]
Fala da tentativa de encontrar uma definição para o termo “cultura” que traduza, por consenso, o pensamento de todos os estudiosos.

1. Labirintos do sentido.
O autor cita que não se deve abandonar a aspiração acima, no entanto, “o relativismo epistemológico e o pensamento pós-moderno debilitaram, por caminhos distintos, aquela preocupação com a unicidade e a universalidade do conhecimento. A própria pluralidade de culturas contribui para a diversidade de paradigmas científicos, ao condicionar a produção do saber e apresentar objetos de conhecimento com configurações muito variadas.” (pág. 36)
Diante de uma variedade de disciplinas e definições de cultura, falando de uma perspectiva antropológica, Canclini resolve adotar a postura de debruçar-se com atenção e “escutar” todos os processos sociais. Assim sendo, ao invés de apresentar novos conceitos de cultura, apresenta a principais “narrativas” quando se fala de cultura nos dias hoje: (pág. 36)
a)    A noção cotidiana de cultura como sendo o acúmulo de conhecimentos e aptidões intelectuais e estéticas. (pág. 37)
O autor sublinha que a definição supra tem sustentação na filosofia idealista e supõe a distinção entre cultura e civilização, elaboradas pelos filósofos alemães no final do século XIX e início do século XX (Spencer, Windelband e Rickert).
Cita que entre as muitas criticas que se podem fazer a esta distinção taxativa entre civilização e cultura, “uma é que naturaliza a divisão entre o corporal e o mental, entre o material e o espiritual, e, portanto, a divisão do trabalho entre as classes e os grupos sociais que se dedicam a uma ou a outra dimensão.” (Pág. 37)
Afirma que essa narrativa, “naturaliza, igualmente, um conjunto de conhecimentos e gostos que seriam os únicos que valeria a pena difundir, formados numa história particular, a do Ocidente moderno, concentrada na ára europeia ou euro-norte-americana. Não sendo, pois, uma característica pertinente da cultura, no estado dos conhecimentos sobre a integração de corpo e mente, nem de uso apropriado depois da desconstrução do eurocentrismo operada pela antropologia.” (Pág. 37)
b)    Frente aos usos cotidianos acima, vulgares ou idealistas de cultura, surge um conjunto de usos científicos, que se caracterizaram por separar a cultura em oposição a outros referentes. Os dois confrontos principais a que se submete o termo são natureza-cultura e sociedade-cultura. (Pág 37)
Dois requisitos a considerar para se construir uma noção cientificamente aceitável de “cultura” (antes de comentar-se os dois confrontos acima):
1)    Uma definição unívoca, que situe o termo cultura num sitema teórico determinado e o liberte das conotações equívocas da linguagem comum;
2)    Um protocolo de observação rigoroso, que remeta ao conjunto de fatos, de processos sociais, nos quais o cultural possa registrar-se de modo sistemático.
A oposição cultura-natureza: durante um tempo acreditou-se que essa oposição permitia fazer essa delimitação. Parecia que, deste modo,  se diferenciava a cultura, aquilo criado pelo homem e por todos os homens, do simplesmente dado, do “natural” que existe no mundo. No entanto, esse campo de aplicação da cultura por oposição à natureza, mesmo depois de muitas pesquisas, não parece claramente especificado. Não se sabe por que ou de que modo a cultura pode abarcar todas as instâncias de uma formação social, ou seja, os modelos e organizações econômica, as formas de exercer o poder, as práticas religiosas, artísticas e outras. (Pág. 38)
A oposição cultura e sociedade: a sociedade é concebida como o conjunto de estruturas mais ou menos objetivas que organizam a distribuição dos meios de produção e do poder entre os indivíduos dos grupos sociais, e que determinam as práticas sociais, econômicas e políticas. No entanto essa oposição deixava de considerar uma série de atos que nada tem haver com poder ou economia, tais como: Porque homens e mulheres pintam a peoe, das sociedades mais arcaixas até a atualidade? Porque as pessoas enfeitam o corpo dependurando coisas nele?
É preciso considerar que o desenvolvimento do consumo evidenciou esses “resíduos” ou “excedentes” na vida social. Tanto assim é que, Jean Baudrillard, explica melhor esta oposição em sua  Crítica da economia política do signo (Canclini, p.40) ao estabelecer quatro tipos de valor na sociedade. Exemplo: O que é uma geladeira? Para que serve uma geladeira?
a.    Valor de uso: uma geladeira é um aparelho doméstico, serve para manter temperatura de alimentos, remédios ou qualquer outro objeto;
b.    Valor de troca: a geladeira é uma mercadoria, que demorou um certo tempo e recursos para ser produzida, e vale algo em dinheiro;
c.    Baudrillard e o "valor signo": geladeira é um conjunto de conotações, de implicações simbólicas. É "nacional" ou não, de marca etc;
d.    Baudrillard e o "valor símbolo": geladeira da minha vó, por ser da minha vó, não pode ser trocada. "Não tem preço", diz o comercial de tv.
Esta classificação permite diferenciar o socioeconômico do cultural. Os dois primeiros tipos de valor têm a ver, principalmente, mas não unicamente, com a materialidade do objeto, com a base material da vida social; os dois últimos tipos de valore referem-se à cultura, aos processos de significação. (Pág. 41)
Pierre Bourdieu, desenvolveu esta diferença entre cultura e sociedade ao mostrar que a mesma se assenta em dois tipos de relações: as de força (usos e trocas) e, dentro delas, entrelaçadas com estas relações de forças, há relações de sentidos, que organizam a vida social, as relações de significação. O mundo das significações, do sentido constitui a cultura.
Finalmente, chega-se assim, a uma possível definição operacional, compartilhada por várias disciplinas ou por autores que pertencem a diferente disciplinas Pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social.
2.    Identidade: camisa e pele
Portanto, ao conceituar cultura destemodo equivale a dizer que ela apresenta-se como processos sociais, e parte da dificuldade de falar dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na história social. Não é algo que apareça sempre da mesma maneira. Daí a importância dos estudos sobre recepção e apropriação de bens e mensagens nas sociedades contemporâneas. Mostram como um mesmo objeto pode transformar-se  através de usos e reapropriações sociais. E também como, ao nos relacionarmos uns com os outros, aprendemos a ser interculturais. (Pág. 42)
Exemplo: o artesanato produzido pelos índios mexicanos que é comprado por setores urbanos e, deslocado de sua função primeira, vai decorar as paredes (ser ressignificado) de quem o comprou.
Ao prestar atenção nos deslocamentos de função e significado dos objetos, no trânsito de uma cultura para outra, chega-se à necessidade de contar com uma definição sociossemiótica da cultura, que abarque o processo de produção, circulação e consumo de significações na vida social.
Configuram essa perspectiva várias tendências, vários modos de definir ou sublinhar aspectos particulares da função social e do sentido que a cultura adquire dentro da sociedade.
Canclini passa a considerar quatro vertentes contemporâneas que destacam diversos aspectos dessa perspectiva processual, a qual considera, ao mesmo tempok o sociomaterial e o significante da cultura.
1ª. Tendência: é a que vê a cultura como a instância em que cada grupo organiza sua identidade;
2ª. Tendência: a cultura é vista como uma instância simbólica da produção e reprodução da sociedade. Apoia-se na Teoria da Ideologia de Louis Althusser, quando diz que a sociedade se reproduz através da ideologia e nos estudos de Pierre Bourdieu sobre a cultura como espaço de reprodução social e organização das diferenças.
3ª. Tendência: fala da cultura como uma instância de conformação do consenso e da hegemonia, ou seja, de configuração da cultura política e também da legitimidade.
4ª. Tendência: é a que fala da cultura como dramatização eufemizada dos conflitos sociais como dramatização simbólica do que está nos acontecedo. Por isso temos teatro, artes plásticas, cinema, canções e esporte.

3.    Substantivo ou Adjetivo ?
Uma  interpretação  muito  interessante  e  válida  pra  o  entendimento  consta  em
pensar a cultura não como substantivo, mas sim como o adjetivo cultural. Já que não faz
mais sentido imaginar a cultura como um bem propriedade de uma nação, faz sentido
imaginar a cultura como justamente a qualidade desse sistema de significa ções próprios
de um povo. E com esta visão, valoriza-se justamente a relação intercultural, como as
diferenças  de  dois  ambientes  diferentes  dialogam  entre  si,  entre  outras  palavras,  a
interculturalidade.

A  concepção de  GarcÌa  Canclini  com  relação às  identidades  culturais,  vem,  eminentemente,  através  de sua  concepção  de  hibridismo  cultural  convertida  em  modelo  explicativo  da  identidades (ESCOSTEGUY, 2001 p.171). Esta perspectiva  faz parte de outras discussões presentes na obra  do  autor,  entre  elas  a  discussão  da  possibilidade,  ou  não  de  uma  identidade  cultural comum  aos  povos  da  América  Latina.  A  partir  desta  perspectiva,  Garcia  Canclini,  a  partir de  “Diferentes,  Desiguais  e  Desconectados  (2006),  sua  mais  recente  obra,  propicia a compreensão  não  de  uma  identidade  cultural,  mas  de  um  espaço  sociocultural  latinoamericano onde estão inseridas as diversas identidades culturais.