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terça-feira, 28 de outubro de 2014

RECADO PRA UM AMIGO




RECADO PRA UM AMIGO

(por Sandra Pereira)


Ausências -rôtas plantas
cultivadas na distância
na pressa, na descalma

Há que adubar presenças!
Semear entre estações.

Entrelaçar os dedos
Espreguiçar a alma
Desopilar o fígado

Ouvir o outro; ser ouvido
Ver-lhe alma e segredos
Refazer as pontes
Relembrar-se amigo.


segunda-feira, 17 de março de 2014

DE SER FLOR


DE SER FLOR
By Sandra Pereira (17.03.2014)

Ora, direis,
falar-me de flores
em plena segunda
se a alma afunda
em hostil correria!?

Se o cinza é a cor
do céu da cidade
e falta vontade
de subir o olhar?

Assim vos replico:
Olhai para as flores
E como elas cumprem
Sua breve jornada:

Um dia colhidas,
Emprestam-nos cor;
No outro ceifadas,
a todos perfumam

Saúdam a vida
Enfeitam a morte
Embalam amores
solícitas flores

apesar da dor!

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

UM OLHAR MEMORIALÍSTICO SOBRE O TEATRO JOINVILENSE: 1865-1950

(Sandra Pereira)
Joinville é conhecida por ser uma cidade de perfil industrial e por concentrar, predominantemente, o seu ramo econômico na indústria metal-mecânica além de outros segmentos. No entanto, o fazer teatral em Joinville, remonta ao início do século XX com a articulação de grupos musicais , de canto-coral, orquestrais  e ligados ao fazer dramatúrgico.
Herkenhoff  (1987, p.  92-93)  salienta que  desde muito cedo  a colônia alemã  estabelecida em Joinville, já por volta de 1865, tanto na zona urbana como na área rural,  por meio da igreja  Luterana e Católica ou de associações de ginastas ou culturais,  valorizava  a  música  por  intermédio  do  canto  coral.  A música fazia parte da vida das famílias de Joinville.  Segundo a pesquisadora  Rosenete Marlene Eberhardt Llerena, em sua dissertação sobre o patrimônio musical Joinvilense[1], há dados que remontam ao ano de 1900 e que dão testemunho de   todo   esse  movimento  musical  que só  crescia   e   vinha acrescentado de pequenas orquestras e grupos musicais. 
A pesquisadora ampara-se em Herkenhoff  (1989, p.  15) que situa a existência de um meio artístico  na cidade em  1900,  descrevendo  o  4.°  centenário  do  descobrimento  do  Brasil,  comemorado durante dois dias em nossa cidade e afirma que “nos dias 3 e 4 de maio de 1900 a comemoração                                                                                                      aconteceu      com     extensa     programação        cultural. Três   peças     de   teatro    foram  apresentadas naqueles dias, duas peças no idioma alemão e uma em português (grifo nosso), as três seguidas de bailes. Em 1901, nos festejos de 50 anos de fundação da cidade de  Joinville, aconteceu a estreia de três grupos teatrais (grifo nosso), com considerável público.” 
        Ainda sobre o crescimento de grupos teatrais e sociedades culturais naquele início de século, Herkenhoff  (1989)  ressalta  o grupo da  Sociedade  25  de  Abril,  que  em  1900  apresentou  uma  peça  teatral  em  português (grifo nosso),  com muito sucesso. Outros grupos se destacaram usando o idioma da terra. 
        João Graxa Gonçalves, um dos músicos que se destacaram na cidade também atuou nos bastidores do teatro joinvilense.  Herkenhoff  (1989,  p.  16) o descreve  como  “maestro  que  desempenhou  importante  papel  e  direção  em  várias  peças  teatrais”.  Além  de  ter  sido  “grande  incentivador  do  teatro  falado  em  português”,  compôs textos musicais para várias peças teatrais. Outro nome que merece ser citado é o de  Inácio Bastos,  chefe  da  estação  telegráfica  de  Joinville,  poeta  e  autor  de  várias  peças teatrais.  
O  livro “História de Joinville”,  de Carlos Ficker (2008), traz muitos relatos sobre a vida e o desenvolvimento da cidade de Joinville por volta de 1904 e 1906 que contribuem para assinalar as primeiras produções teatrais compostas e encenadas em Joinville. Porém, nas duas  primeiras  décadas  do  século  XX  ocorreu o primeiro  grande  abalo  na  estrutura   psicossocial,   por  fatos   relacionados   com  a   Primeira  Grande  Guerra  Mundial.  Abalos  não  sentidos  em  âmbito  econômico,  e  sim  incidentes  em  suas  atividades  culturais  e  formas  de  repressão  relacionadas   às  questões  étnicas,  conforme Herkenhoff (1987). 
        Segundo Coelho (2005), os imigrantes alemães estariam longe de  constituírem  maioria  numérica,  porém,  pela  construção  e  preservação  de  sua  identidade étnica,  se destacaram no processo de colonização  e integração ao meio nacional.  No  fim  da  década  de  1930  uma  mescla  de  valores  nacionalistas  e  autoritários  movia o Estado Novo sob ordem do Presidente da  República Federativa  do  Brasil.  Getúlio  Vargas  iniciou  no  ano  de  1938  a  chamada  “grande  obra  de  nacionalização”, que tinha como função principal suprimir qualquer atividade política  de estrangeiros imigrantes no Brasil.
Os grupos de canto-coral e de teatro que se formavam, muitos deles, dentro das escolas, passam a sofrer os efeitos da nacionalização imposta por Getúlio Vargas, presidente do Brasil por dois mandatos.   Coelho  (2005)  enfatiza  ainda  que  no  estado  de  Santa  Catarina  a nacionalização adquiriu formas diferenciadas, dirigidas enfaticamente aos imigrantes  descendentes de origem alemã,  o  que culminou numa combinação de esforços por parte  do  governo,  de  ações  militares,  com  a  firme  intenção  de  “abrasileirar  os  brasileiros”.  Até  1930  o  idioma  alemão  era  o  cotidiano  na  cidade  de  Joinville,  em  todos os modos de relações.  Para Ternes  (1984), tal fato decorria  da falta de oferta por  parte  dos  governos,  até  então,  de  escolas  e  outras  formas  de  auxílio  aos imigrantes  que  viviam  conforme  a  bagagem  de  conhecimentos  que  trouxeram  da  Europa. 
        Segundo       Ternes     (1984),    as    medidas      da   nacionalização       forçaram      o  fechamento de todas as escolas que  ensinavam em  idioma alemão, o que acabou  por  provocar  falta de vagas  em escolas públicas  aos alunos egressos das escolas  particulares.  “O  governo não criou  escolas públicas suplementares”;  principalmente  em áreas rurais da cidade faltavam professores, o que resultou em queda na qualidade  no ensino. Das 661 escolas que atuavam nas regiões de imigração alemã em 1937,  sobraram  113  em 1938  e  em 1939  o  número  de escolas  era  69. Logo,  não havia vagas  nas  escolas  públicas  para  todas  as  crianças  em  idade  escolar,  assim  a obrigatoriedade de  uso do  idioma português nas  atividades  escolares teve o reflexo  de  “emudecer”  a  maior  parte  das  crianças  e  dos  professores  que  tinha  como  primeira  língua  o  alemão,  causando  graves  problemas  pedagógicos.  As  medidas  tomadas   pela   nacionalização   geraram   reflexos   imediatos   na   comunidade   dos  imigrantes  alemães,  que  não  foram  absorvidos  na  sua  totalidade  pelas  escolas  públicas existentes nesse período. Portanto, o desmonte da comunidade artística  foi e  da estrutura escolar estão associados  e, como consequência, houve o desmantelamento de várias grupos de canto-coral e de teatro que haviam surgido dentro das escolas. Quando em pleno funcionamento, a Escola Alemã, era conhecida por ensinar e promover o canto-coral, chegando a formar cantores que iriam compor outros corais locais.
       Partindo da premisssa de que quanto mais cedo um cidadão for exposto à fruição de um bem cultural e/ou ao ensino de uma arte mais chances terá de ser uma pessoal completa, tem-se a escola como espaço essencial à formação artística e oportunidade de assimilações estéticas variadas. Assim sendo, a forte pressão imposta pelos ideais nacionalistas e o consequente fechamento das escolas implicaram numa visão reducionista acerca da fruição de bens culturais  até então circulantes.
 Encerrava-se um ciclo produtivo nas apresentações teatrais  musicadas e faladas e nas quatro décadas seguintes  a produção cultural  desenvolvida em Joinville ficou restrita a algumas  festas de igreja, aos bailes de salão nos finais de semana (que persistem até os dias atuais), à Festa das Flores, aos jogos de futebol,  à fruição do acervo dos museus, aos cinemas e eventuais exposições de artes plásticas.
Da época getulista até os idos de 1970, a cidade ressente-se da ausência de espetáculos produzidos em Joinville apesar da potencialização da expansão industrial que ocorria na cidade.
“[...] da década de 1970 para cá a população de Joinville cresceu de 150 mil habitantes para pouco além dos 500 mil atuais. A área urbana ampliou-se  em  vários  quilômetros,  surgindo  na  geografia  da  cidade novos e populosos bairros. O perímetro urbano, de uma extremidade a  outra,  varia  em  torno  de  25  km.  Novas  três  Joinvilles  foram agregadas à cidade de 1973. A frota de veículos automotores saltou de 19 mil para os atuais 250 mil. Em 1966 a frota não chegava a 5.140 mil  veículos  motorizados.  O  número  oficial  de  ruas  e  avenidas cresceu de 1.200, em 1974, para 4.129 hoje, o que, somando  a becos e servidões, eleva a mais de 5 mil as ruas na cidade. “ (TERNES, 2010: 332)
A despeito desse perceptível desenvolvimento industrial, não existia, contudo,  produção teatral  na cidade, salvo uma ou outra iniciativa isoladas, notadamente nas décadas de 70 e 80, que não apresentaram continuidade, gerando um novo hiato da oferta desse bem. Nesse cenário contudo, o teatro da Sociedade Harmonia Lyra continuava, vez por outra, a  trazer shows musicais e ao final da década de 80 e início da década seguinte, recomeçou a trazer  peças teatrais com artistas renomados, vindos dos grandes centros culturais do país (eixo Rio-São Paulo).
Ainda sobre a década de 80, vale ressaltar que a cidade continuou a progredir no ramo industrial e também em outros segmentos o que propiciou uma diversidade econômica que trouxe em seu bôjo oportunidades de negócios para os setores ligados ao comércio, à saúde, ao turismo executivo notadamente, ao lazer e à cultura em termos de festas populares, abertura de salas de cinema em shoppings e exposições de artes plásticas. Segundo Ternes (2010: 333)   “A  globalização  mudou o cenário  econômico  de  Joinville  nas  últimas  décadas  [...]”  e  novos  negócios  surgiram como fábricas de equipamentos para ginástica, produtoras de  softwares, modernização tecnológica, gestão empresarial informatizada e um número expressivo de abertura de pequenas  e  médias  empresas  fomentando  o  crescimento  econômico  local. 
No entanto,  somente a partir de 1997 o cardápio cultural será ampliado com uma maior articulação na área teatral. É nessa fase que a cidade passa a contar com a retomada de uma produção local  mais constante devido a chegada de alguns diretores de teatro vindos de outras cidades. Deixava-se de encenar espetáculos apenas trazidos pelos grupos teatrais de outros pólos para reativar a produção local feita por  diretores, escritores e atores que residiam em Joinville. Ressalte-se o papel da UNIVILLE-Universidade da Região de Joinville que passou a contar com um grupo de teatro na década de 90 o que ajudou a fomentar a produção local ao lado de outros nomes.
Face ao poder do teatro  em operar uma leitura do social e do nosso entorno; de possiblitar a percepção de uma verdade sob vários ângulos treinando nosso olhar e aguçando nosso senso crítico sobre temas variados (BOAL: 1991)  é que considera-se fundamental a inserção da oferta do teatro como  bem cultural à uma população marcadamente imersa num cotidiano de ferro e aço,  pouco ou nada exposta à fruição desse produto cultural, como forma de ampliar sua visão sobre seu próprio entorno e possibilitar reflexões para além do mesmo.
Assim, considera-se  relevante um registro acerca da evolução do teatro em nossa cidade sob a forma de um olhar memorialístico, inicialmente sobre a produção teatral feita em Joinville, por pessoas aqui residentes,  no período 1865 -1950 e que pode tornar-se viável a partir de pesquisas bibliográficas, documentais, webgráficas que possibilitará recuperar registros que ajudem a contar acerca da produção teatral local daquelas décadas.
A pesquisa bibliográfica e documental, além de contribuir para a recontar o teatro que se fazia naquelas épocas, também servirá para aguçar nosso olhar sobre as relações sociais subjacentes a esse movimento cultural, bem como, ajudará a compreender as relações de poder implícitas em tais relações.
Outra justificativa ao trabalho que ora se empreende é o fato de que o teatro é uma ferramenta  para questionar o mundo, pois tematiza problemas do cotidiano e do entorno do cidadão, conclamando-o à reflexão, à mudança de posturas e tomada de decisão, à quebra de paradigmas, à reconstrução de um novo cenário social, melhor ou inteiramente novo o que significa aprender a fazer a política no cotidiano de nossas ações “pois todo o teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas.  Afinal, o teatro é transformação, movimento, e não simples apresentação do que  existe. É tornar-se e não ser.” (BOAL: 1991). Nesse sentido, entendemos que ao registrar a evolução do teatro em Joinville será possível perceber a crescente oferta desse bem cultural como uma intervenção positiva no dia a dia da cidade, uma mudança nos hábitos de consumir cultura e, portanto, uma transformação social em função de um cardápio cultural reconfigurado.
            A investigação sobre as representações teatrais em Joinville, nas décadas de 1865 à 1950, sustentada por conceitos de cultura, patrimônio, identidade, memória, arte e diferentes concepções de teatro, a partir da análise de múltiplas vozes, permite perceber como a cidade foi receptora e produtora da arte teatral.  
REFERÊNCIAS:
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6ª
. Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1991.
BRASIL. MINISTÈRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Parâmetros curriculares nacionais: Arte. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental: Brasília (DF), 1997 v.VI. 
COELHO,  Ilanil.  É  proibido  ser  alemão:  é  tempo  de  abrasileirar-se.  In: GUEDES,  Sandra  P.  L.  de  Camargo  (Org.).  Histórias  de  (i)migrantes:  o  cotidiano  de  uma  cidade. Joinville: Editora Univille,  1998.
 
______ . É proibido ser alemão: é tempo de abrasileirar-se.  In: GUEDES, Sandra P.  L. de Camargo (Org.). Histórias de (i)migrantes: o cotidiano de uma cidade. 2. ed.  rev. e atual. Joinville: Editora Univille, 2005.
 
______ .  Pelas  tramas  de  uma  cidade  migrante  (Joinville):  1980-2010.  Tese  (Doutorado  em  História)–Universidade  Federal  de  Santa  Catarina,  Florianópolis,  2010. 
 FICKER, Carlos.  História de Joinville. Crônica da Colônia Dona Francisca. 3. ed.  Joinville: Letradágua, 2008.  

HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective. 
HERKENHOFF, Elly. Era uma vez um simples caminho...  Fragmentos da história  de Joinville. Joinville: Fundação Cultural, 1987. 
______. Joinville nosso teatro amador (1858-1938). Joinville: AHJ, 1989.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 2
ª. São Paulo: UNICAMP, 1992.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 3ª.  Petrópolis: VOZES, 2005.
MAFFESOLI, Michel. Saturações. 1ª.  São Paulo: ILUMINURAS, 2010.
MINAYO, Maria Cecília de S. e SANCHES, Odécio. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.9, n.3, jul/set. 1993.
MICHALSKI, Yan. Augusto Boal. In: ______. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq
TERNES.  Apolinário.  Tempos  modernos:  a  presença  dos  italianos  em  Joinville  – 1973-2008. Joinville: Editora Univille, 2010.

Sites consultados:
Página na internet sobre a Lei Rouanet e seus diversos editais disponível em:
<http://www2.cultura.gov.br/site/>. Acesso em: 18 mai. 2013, 16:30:30.







[1]  LLERENA, Rosenete M.E. A memória do patrimônio musical de Joinville: uma abordagem sócio-histórica e cultural das composições de 1900 a 1950.  Dissertação (Mestrado  em  Patrimônio Cultural e Sociedade)–Universidade  da Região de Joinville,  Joinville, 2012, p.65-66.
 
  

sábado, 19 de outubro de 2013

O “MEU” RIO JARAGUÁ
(BAIRRO DO RIO DO CERRO –  JARAGUÁ DO SUL,SC)
                                                                                                          Sandra Pereira

A dificuldade em encontrar  algum registro fotográfico de época relativo a uma paisagem natural que tenha marcado a minha infância (e que eu pudesse confrontar com as imagens de agora) afim de poder cumprir com o  trabalho pedido pelo professor  do meu curso de mestrado, na Univille, não impede que eu vasculhe minhas memórias e, fechando os olhos, encontre o mesmo rio Jaraguá, imenso e caudaloso como ainda o trago guardado em mim.
O “meu” rio Jaraguá de 1968, parece gigante aos meus olhos de menina. Tenho apenas 6 anos e moro bem ao lado dele. Meu pai é um dos funcionários da recém-fundada Malwee e moramos (sem pagar aluguel) numa casa de madeira que nos foi recentemente cedida pelo proprietário da empresa. Portanto, estou, no máximo, a 50 metros da margem do rio, pouco antes da enorme ponte de madeira e muito próxima à residência da família Weege.
O “meu” rio guarda mistérios insondáveis que aguçam minha curiosidade.
Sem pedir licença, resolvo descer a barranca e refrescar meus pés numa pequena praia de areia clara e seixos arredondados.
A tentação de banhar-me é enorme, porém, assustada, mudo de ideia ao ouvir o chamado, já desesperado, de minha mãe.
Preciso ir para casa. Que pena! Não deu tempo de recolher os ovos que as patas (ou seriam gansas?) costumam depositar na areia.
“Que ovos, menina! Isso deve ser ôvo de cobra! Não lembra da cobra que a mãe matou semana passada??”
Só então descubro que os répteis adoram fazer seus ninhos nas barrancas do rio e no verão costumam sair para dar suas voltinhas no pomar da minha casa... e até dentro dela.
Ainda assim, não me importo em dividir a beleza do rio com os mesmos. Tenho fascínio pela água e levo algum tempo até poder convencer minha mãe a darmos um passeio na sua prainha. Preciso mostrar-lhe os ovos  afim de que ela os identifique e, quem sabe, traga alguns para fazermos um bolo.
Um aparte para falar de minha mãe: Rosa é uma mulher de mil habilidades. Além de matar cobras logo na primeira paulada, sabe fazer doces como ninguém e prontamente identifica os ovos: são de gansa! ... “mas aqueles mais compridos alí,  não sei não!!!”
Porém, o sonho de comer um bolo feito com aqueles ovos sucumbe diante da postura politicamente correta da minha mãe: “As gansas não são nossas!! Nein, nein!”
Nesse dia aprendo minha primeira lição sobre o que é ser honesta: “Não se tira um grão de arroz do lugar se ele não for nosso!”... tão diferente do lema “achado não é roubado” que irei presenciar pela vida a fora. “Vou fazer um bolo de laranja com ovos de galinha mesmo! E nada de você ir sozinha no rio!”
Fica combinado que eu devo brincar no quintal sob os olhos atentos de minha mãe.
O jeito é subir na goiabeira para poder admirar o rio de longe e poder cantar pra ele e pra Deus, um dos meus passatempos favoritos. Gosto de ouvir minha mãe cantar e ela me ensina velhas cantigas em alemão. Falo alemão –uma variante dialetal que talvez já tenha desaparecido. Não me alfabetizo nessa língua; continuo “analfabeta em alemão” até hoje. Porém, guardo-a numa gaveta trancada em algum canto da memória.
A goiabeira convive em paz com os vários pés de frutas e vou aprendendo a conhecer cada um: laranja-açúcar, laranja-lima, pêssego, ameixa, mamão, abacate, limão e me delicio ajudando minha mãe a cuidar da  imensa horta –tenho até minha própria enxada pequena. Sinto-me importante semeando os canteiros e vivo uma infância feliz num bairro que se urbaniza rapidamente e ao mesmo tempo conserva ares de cidade do interior.
Nesse sábado, pela noite, meu pai e os vizinhos colocarão os côvados para capturar um peixe que rasga todas as redes de pesca: o cascudo da pedra. Ainda que a fábrica lance tinta de tecido no rio, mesmo assim é possível, em um ponto mais distante, anterior à fábrica, pescar e ser feliz.
Chega o domingo de manhã e resolvo acompanhar meu pai na empreitada. Costumo acompanhá-lo na pesca de caniço.
Fico empolgada ao ver os homens abrindo aqueles côvados que mais parecem  cestos gigantes. Sou apresentada ao peixe e nunca esquecerei da sensação rugosa que experimento ao tocar um exemplar da espécie embora ele me pareça extremamente feio.
Meu cunhado aparece com minha irmã e os filhos. Meu pai e ele gostam de cozinhar e volta e meia inventam algum prato. Um dos colegas de meu pai ajuda a trazer os peixes. Começam a limpá-los e vão jogando dentro de um panelão.. Ao cabo de um tempo, está pronto um delicioso caldo de cascudo da pedra. Sim, “tem que ser da pedra!”. Sou informada  que existem cascudos que vivem em outras águas, porém, o das pedras é o de melhor sabor.
Cresço um pouco e estou ansiosa para ser matriculada no pré-primário. Na verdade ando rabiscando umas folhas em branco nos cadernos antigos das minhas irmãs (ótimas alunas!) que a minha mãe guarda de lembrança dentro duma velha bolsa escolar de couro. Ela nem imagina que arranquei uma folha para desenhar. Uma só! Mesmo assim, logo sou descoberta e passo a fazer meus rabiscos em papel de pão até o dia em que compram um caderno só pra mim.
Coloco as bonecas sentadas em cima dos caixotes de madeira e dou aula para elas. Noutras vezes faço de conta que são um balcão ou uma mesa “de escritório” e me ponho a sonhar em, um dia, trabalhar num lugar grande, sentada atrás duma mesa que tenha uma máquina de escrever e uma calculadora iguaizinhas as que vi no escritório da empresa quando, dia desses, fui levar a marmita para o meu pai que não queria “perder tempo” em vir almoçar em casa.
O rio me intriga e me encanta. Convenço meu pai a nos levar para tomar banho num dia quente de verão. A água é limpa e posso enxergar as pedras e os peixinhos nadando por entre meus pés.
No final deste ano mesmo iremos mudar para Guaramirim onde iniciarei meus estudos. Não frequento o pré-primário por muito tempo.
Dizem os psico-pedagogos que as brincadeiras de infância delineiam os múltiplos papéis que se vai desempenhar na vida.
Pois digo que olhando o rio do alto da goiabeira (onde gosto de cantar bem alto) ensaio e sou várias pessoas: uma quase atriz, uma quase-cantora e uma quase violonista; bancária, secretária numa multinacional (num escritório “bein grandeee”), leitora voraz metida a escrever e professora de idiomas. Viajo por uma parte do mundo, exercito meu inglês e em Frankfurt, na hora de pedir uma informação, nem todos dominam o idioma “mundial”. Vejo-me obrigada a destravar uma gaveta: encontro a chave rapidamente e arrisco um “Bitte, wo ist das Badezimmer?” (Por favor, onde fica o banheiro?) e me surpreendo ao entender a resposta: siga em frente e entre na quarta porta à direita. Alívio ao quadrado!
Nesse dezembro de 68, dias depois do Natal, despeço-me do “meu” rio Jaraguá um pouco entristecida mas supero isso em poucos dias, animada com o início das aulas que me esperam em Guaramirim.
Futuramente voltarei para visitar o Parque da Malwee algumas vezes, porém, de carona. Todas as vezes meus olhos irão procurar sôfregos a casa e o rio. Quando pergunto sobre a ponte e a casa, a resposta é sempre a mesma: “Já passou! Você não viu?”

(...)
Nesta tarde de 2013, aos 51 anos volto à Barra do Rio do Cerro e molho os meus pés no rio  Jaraguá ainda uma vez.
Surpresa o reconheço muito embora ele me pareça diferente: não é tão grande quanto eu o trago guardado em mim. Será que cresci tanto assim ou ele, como um ancião foi quem encolheu? Ainda vejo umas poucas árvores em suas encostas, porém, suas barrancas deram lugar a um muro o que o faz parecer ainda mais estreito. Suas águas estão mais escuras com uma coloração barrenta. Nem sinal das gansas tampouco das cobras!
Será que todos foram embora como eu?
Sou informada que ainda é possível pescar em alguns pontos do rio, notadamente, após a chuva. Geralmente dois dias depois o rio fica limpo.
Lembro do meu professor me pedindo para prospectarmos o local considerando uma aproximação de dois graus entre a temperatura máxima no inverno e a máxima de verão. Sou alertada que, possivelmente, estas duas estações desaparecerão de nosso estado nos próximos quarenta anos. Provavelmente, viveremos num clima de “eterna” meia-estação. Haverá um impacto no meio ambiente com fortes consequências para a nossa economia em seus vários segmentos: desaparecem o turismo de verão e não teremos mais maçãs em Friburgo; só haverá espaço para o cultivo de bananas, mesmo nos lugares mais altos.
A projeção que faço me alerta sobre o desaparecimento das árvores frutíferas e o aquecimento das águas que podem vir a extinguir algumas espécies de peixes. Tomara que estejam enganados! Só o tempo dirá.
Ansiosa, procuro vestígios da velha casa e seu pomar. Quem sabe ainda esteja lá! Talvez eu possa ver ao menos um pé de laranja ou a velha goiabeira.
A foto que localizo pela internet desmonta minha expectativa e vejo que o local é, agora, um estacionamento.
A rua está pavimentada e nas calçadas estão plantadas belas árvores. O cenário é agradável, porém, é outro. Há sinais de desenvolvimento e modernidade por todo lado.
E a ponte gigante de madeira? É de concreto e parece tão pequena!
Aliviada percebo que  a velha fábrica ainda permanece lá. Seu prédio de tijolinhos à vista também não me parece tão grande (risos) embora seja possível visualizar sua expansão.
Também reencontro a antiga casa dos donos da empresa -hoje transformada num escritório- e que povoa minhas fantasias tal é sua beleza e a formosura de seus “imensos” jardins.
A menina que sou ainda conversa com a filha dos donos pela cerca de arame farpado que separa as duas propriedades. Vez por outra uma gentil senhora, com ares de avó a acompanha e, ambas, vem conversar com minha mãe e eu. As senhoras, por puro saudosismo, falam em alemão e apreciam a companhia uma da outra. Sou presenteada com roupas e brinquedos semi-novos quase sempre. Não tenho tudo o que quero mas tenho tudo o que preciso. Nada me falta. Nessa mesma manhã somos convidadas para um delicioso café da tarde e brinco um pouco com a garota, mais velha do que eu uns poucos anos. Diante do “Vamos embora que já é tarde!” imploro que minha mãe me deixe ficar um pouco mais: a casa de bonecas está a espera de ser visitada e meus olhos vislumbram um espetáculo jamais esquecido.
Subitamente ouço minha mãe chamando por sobre a cerca: “Pra casa, já! Tem uma  louçinha pra você secar!”.
Relutante e educada me despeço. Há duas tarefas que precisam ser cumpridas. Atendo à mãe e ao professor: revisito o rio pela minha escrita e os meus pés o tocam pois a menina “de dentro dele nunca os tirou”1.







1 Trecho extraído da música “Força Estranha” de autoria de Roberto e Erasmo Carlos.